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terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Os hospitais e o alfaiate

George Bernard Shaw, célebre escritor irlandês, inspirou um sem número de outros intelectuais com seu humor refinado e sua inteligência acima da média, dentre eles o nosso falecido Millôr Fernandes, com o qual dizem que se identificava bastante. A despeito de algumas posições bastante controversas para a sua época com relação aos sistemas políticos e a própria humanidade, criou algumas pérolas da literatura mundial, chegando a ser indicado ao Prêmio Nobel de Literatura em 1925. E, fato inusitado, se recusou a recebê-lo.
 
Há, entre seus pensamentos vários que particularmente me agradam, pela forma como são adaptáveis ao nosso cotidiano. Alguns deles serão apresentados ao leitor ao longo deste texto.
 
“De todos os homens que conheço, o mais sensato é o meu alfaiate. Cada vez que vou a ele, toma novamente as minhas medidas. Quanto aos outros, tomam a medida apenas uma vez e pensam que seu julgamento é sempre do meu tamanho.”
 
E aonde entram os hospitais nessa história?
 
Sua reflexão acerca do alfaiate, de forma simples e brilhante, apresenta uma analogia bastante atual com as propostas e linhas estratégicas da maioria das organizações de saúde, focadas ultimamente na absorção de práticas que tentam, nem sempre com sucesso, diferenciais competitivos fundados em lógicas teoricamente afinadas com supostas tendências de mercado ou copiando exemplos aplicados com êxito em outras organizações, senão vejamos:
  • pulverização da assistência na expectativa de preencher lacunas assistenciais possivelmente promissoras do ponto de vista de reembolso pelos pagadores;
  • investimento maciço em tecnologia diagnóstica e terapêutica de ponta, com clara e indisfarçável tentativa de se notabilizar dentre a concorrência pela existência da tecnologia em si, sem avaliação custo-efetividade prévia, análise do ambiente mercadológico ou mesmo consulta àqueles profissionais que farão uso da mesma, para inquirir se é realmente necessário tal investimento;
  • implantação acriteriosa de certificações de qualidade, muitas vezes na expectativa, aparentemente vã, de obter vantagens diferenciadas por ocasião de reembolso por serviço prestado pelas fontes pagadoras. Um verdadeiro “viés de intenção”;
  • má utilização ou utilização tímida dos recursos oferecidos pelas tecnologias de informação: muitos não sabem sua real finalidade ou mesmo que dados podem ser extraídos na expectativa de criar informações úteis para o planejamento estratégico da organização;
  • planejamento estratégico? Que planejamento estratégico? O que seria isso e para que serve?
  • super-utilização de recursos diagnósticos e terapêuticos, criando a falsa sensação de acolhimento e competência para o paciente e seus familiares, parte frágil do sistema e exposto a uma assimetria de informação que não lhe deixa enxergar que, por melhor que seja a boa-fé daqueles que estão encarregados de seu tratamento, existe um limite de atuação até mesmo quando a intenção é boa;
  • publicidade de efeito questionável, que coloca os bens intangíveis que representam os esforços das organizações de saúde na prevenção, promoção e recuperação das enfermidades no mesmo patamar dos artigos ordinários. A boa, e talvez única, publicidade eficiente é aquela representada pela imagem transmitida pelos profissionais e demais colaboradores aos pacientes e seus acompanhantes, tanto do ponto de vista de carinho e atenção quanto de eficiência e racionalidade nas ações. Para isso faz-se imprescindível a disseminação entre todos dos valores e da missão da organização, para que disso resulte uma forma de ser única e que dispense a necessidade de ser a todo momento evocada;
  • negligência com iniciativas que promovam o ensino e a pesquisa, importantes canais para a motivação das pessoas, para a formação de técnicos e profissionais dentro dos valores previamente instituídos e como forma de colaboração para com a sociedade em geral. O aluno de hoje é o formador de opinião amanhã, é ele quem, dentre outros, fará no futuro o juízo de valor da sua organização acerca de sua lisura, ética, competência e responsabilidade, quando do relacionamento com outros entes no plano dos negócios em geral;
  • precarização das relações de trabalho, tornando os profissionais, notadamente os médicos, visitantes de luxo. Nossa realidade econômica é um obstáculo frequentemente invocado para justificar a não contratação formal destes (apontado por muitos como um primeiro passo para melhorar a performance organizacional), o que pode ser de fato verdade: nossas leis são relativamente inflexíveis nas relações de trabalho. Mas se por um lado há obrigações por parte do empregador, estas deverão também existir desta para com seus empregados, o que não acontece com frequência. Estamos nos acostumando a somente aplicar nosso conhecimento com qualidade e dedicação somente se naquele momento uma boa oportunidade de remuneração for avistada, o que não é eticamente correto. Quantos realmente se debruçam acerca das alternativas a esse modelo desgastado de prestação independente de serviços (chamadas muitas vezes de forma inapropriada de “parceria”), que não agrega valor e que, em última análise, emperra a evolução da organização?
O alfaiate do autor tira suas medidas a cada vez que recebe a visita de seu ilustre cliente. Os demais se baseiam em medidas (conceitos) pré-concebidos para aplicá-los, julgando que sutilezas dessa natureza são dispensáveis. Não são.
 
“O especialista é um homem que sabe cada vez mais sobre cada vez menos, e por fim acaba sabendo tudo sobre nada.”
 
As organizações de saúde são organismos vivos, dinâmicos, complexos e, coisa difícil de fazer ver, únicas. Como tal, cada intervenção, cada plano estratégico, cada aquisição de alto custo deve ser pensada de tal forma que privilegie os aspectos relacionados às necessidades da comunidade onde ela está inserida, à sua missão organizacional, seus valores e sua história.
 
“O homem razoável se adapta ao mundo; o irascível tenta adaptar o mundo a si próprio. Assim, o progresso depende do homem irascível.”
 
Assim, temos que se as ações emanadas dos gestores e do braço operacional da organização incluindo e destacando o Corpo Clínico (por si só entidade bastante complexa e difícil de lidar) não forem moldadas de acordo com o momento político-econômico, com seus valores fundamentais, com sua tradição naquilo que realmente faz bem, com as peculiaridades de seus profissionais (que devem acima de tudo respeitar esses valores) e, principalmente, com as necessidades dos pacientes que para lá se dirigem em busca de uma resposta aos seus problemas; encontramos então uma organização fora do seu eixo e com boas chances de naturalmente ser relegada a um plano secundário no cenário mercadológico.
 
“Temos tempo bastante para pensar no futuro quando já não temos futuro em que pensar.”
 
O pior é que para chegar a um estado de satisfação mútuo, que contemple todos os atores desse arranjo, o caminho não é complicado. Pelo contrário. Só precisa ser encontrado. Uma vez encontrado, a cúpula gestora poderá ter a grata surpresa de perceber que nos elementos mais simples e ordinários do dia a dia de uma organização hospitalar é que está a inspiração para um verdadeiro investimento. E o melhor, bem baratinho…
 
“A simplicidade é o que há de mais difícil no mundo: é o último resultado da experiência, a derradeira força do gênio.”
 
Esses conceitos não tão abstratos assim. Mas é necessário esforço para pensar, buscar ou identificar as lideranças certas, e agir com coerência. Ser uma boa organização de saúde há muito tempo deixou de ser aquela em que os médicos são diferenciados pela quantidade de diplomas, ou que apresente diferencial de hotelaria que a aproximam de um hotel de luxo, ou mesmo aquela em que se faz o exame mais sofisticado da cidade. Afinal
 
“A reputação de um médico se faz pelo número de pessoas famosas que morrem sob seus cuidados.” (George Bernard Shaw)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Novo modelo de remuneração de prestadores em saúde

O site Saudeweb publicou essa semana matéria sobre o impacto causado pelas novas formas de remuneração preconizadas pelo grupo de trabalho liderado pela ANS (http://saudeweb.com.br/34176/nova-forma-de-remuneracao-repercute-no-mercado-de-saude/?utm_source=twitterfeed&utm_medium=linkedin&goback=%2Egde_2351724_member_194536112), e que visam padronizar procedimentos através de custos fixos globais, em detrimento do atual modelo de pagamento retrospectivo ("fee-for-service"). Não é uma idéia nova e independente disso algum prestadores já estão se relacionando com algumas operadoras de planos de saúde dessa maneira, com benefícios mútuos. Entretanto, cuidados deverão ser tomados nesse processo. Para início de conversa, devemos assumir que nossa capacidade de nos mantermos inertes perante os fenômenos que interferem no nosso trabalho e bem estar é impressionante. Enquanto protagonistas de quaisquer transformações, vamos nos agarrar na saia da ANS (cuja função precípua é a defesa da melhor relação entre OPS e usuários, não de profissionais e prestadores) para exigir da mesma uma solução de um problema que deveríamos ter a competência de resolvermos, até porquê em boa medida fomos nós que o criamos.... 

Mas, já que alguém teve a caridade de nos fazer esse favor, vamos em frente. 

Porter, um afamado estudioso de sistemas de saúde e organizações em geral, tem uma visão sistêmica do processo interessante e razoável, mas questiono se exequível quando se leva em consideração as peculiaridades do negócio e das próprias organizações envolvidas, principalmente em nosso país. Como já citado, num país como o nosso, qualquer tentativa de padronização de processos, no sentido de que todos devem ser fiéis ao mesmo, deve ser olhada com cautela. Imagino que no futuro a aplicação dessas novas diretrizes, que são boas por sinal, tenda a respeitar regionalismos e um certo grau de hierarquização entre os prestadores no que concerne aos quesitos qualidade, viés de seleção e governança. 

Outro fator a ser considerado é a remuneração dos profissionais por performace, que tanto se preconiza, Não há como fugir dela. Não importando qual modelo, nem se será sistematizado ou não, possivelmente não será deixada de fora no cálculo do risco. Mas, via de regra, quem paga a conta costuma privilegiar nesse modelo valores mais interessantes para o pagamento do trabalho do profissional, mesmo porquê não deixa de ser uma forma de reforçar a estratégia de esvaziar qualquer iniciativa de privilegiar fornecedores e, de forma indireta, esses mesmos profissionais em uma lamentável quantidade de vezes. 

E, creiam, para quem já trabalha com isso na prática, as margens costumam ser muito boas, desde que os princípios básicos da racionalidade e bom senso estejam acima de quaisquer outros. 

Mas do jeito que somos desorganizados e eivados de interesses individuais, seria muito triste trocar as negociações individualizadas de tabelas de pagamento retrospectivo, por "pacotes" individualizados prospectivos entre OPS e prestadores. Não se assustem se isso acontecer.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

A cobra com TOC


Recentemente foi postada uma foto na internet, cuja origem ignoro, mostrando uma cobra deslizando entre as junções de um calçamento pré-moldado. Até aí nada demais, o engraçado foi atribuir à coitada da cobra uma patologia: transtorno obsessivo-compulsivo, justamente por não “caminhar” por sobre as pedras. Vejam se realmente não parece uma cobra com TOC:
A cobra com TOC
Muritiba, Bahia, município situado no Recôncavo Bahiano, com 27.212 habitantes, segundo informações do IBGE de 2007, IDH de 0,676 e distância da capital do estado da Bahia, Salvador, de 64km. Foi nessa pequena cidade que no dia 15/11 deste ano a médica Larissa Andrade Costa, de 26 anos, alegando total falta de condições para atendimento à população da cidade, resolveu fechar as portas do único hospital local, um hospital público municipal. Em seguida, procurou a delegacia de polícia aonde registrou Boletim de Ocorrência em que denunciava a impossibilidade de exercer seu trabalho em função da falta de medicamentos básicos para serem usados nos pacientes e a impossibilidade de contar com a única viatura disponível  para transferência de pacientes mais graves para outros locais(ambulância), pois a mesma se encontrava sem combustível. Em declarações posteriores, informou que o gestor local (não diz qual) havia sido notificado alguns dias antes a respeito das condições locais inadequadas, sem que nenhuma providência tivesse sido tomada. Um blog local ratificava essa informação. Várias pessoas que lá residem ficaram bastante revoltadas com a situação, não sem razão.
O prefeito municipal, Sr. Epifânio Marques Sampaio (PR), demitiu a profissional no dia seguinte.  Após muitas explicações, o tanque da ambulância foi cheio e os estoques de medicamentos básicos voltaram a existir.
E o que tem a ver uma cobra com TOC e a corajosa médica da pequena cidade de Muritiba?  Ambos são iguais num ponto: representam situações absolutamente surrealistas. A diferença é que uma cobra com TOC é totalmente implausível. O que aconteceu no município de Muritiba na Bahia, e que acontece na maioria dos 417 municípios baianos, e nos 5.565 municípios do Brasil, é uma realidade.
Entre estes, cerca de 4.000 deles têm menos de 20.000 habitantes, e concentram 18% de toda a população do país (estamos falando de aproximadamente quarenta milhões de pessoas). Nesses, é comum a inexistência de estruturas hospitalares minimamente adequadas para cumprir sua função de atendimento de situações de complexidade um pouco maior. Algumas vezes, nem o que poderia ser chamado de hospital existe. E é comum nem médicos poderem ser encontrados.
O somatório dos leitos de todos os estabelecimentos hospitalares do Brasil nos mostra que, em que pese a carência de leitos observada nos grandes centros, 60% deles estão ociosos, justamente por conta dos leitos destes hospitais (a maioria municipais ou de fundações), que carecem de resolutividade.
O quadro atual é fruto de uma construção histórica marcada acima de tudo por uma percepção equivocada do que vem a ser o melhor modelo de assistência à saúde, pressionada por diversos entes que de uma forma ou outra se beneficiaram e ainda se beneficiam da existência deste tipo de arranjo, principalmente os políticos locais. O SUS teve o mérito de tentar (e ainda tenta) implementar um novo modelo assistencial que ainda esbarra em vários obstáculos. Mas isso fica para outro comentário.
Não vem ao caso nesse momento criticar o modelo acima. Nem o Sr. Epifânio, imediato na sua reação. Nem mesmo a situação de penúria pela qual boa parte, senão a maioria, dessas estruturas designadas “hospitais” por esse Brasil afora deve estar passando, no pretenso objetivo de oferecer assistência médica às suas populações. Pelo menos na visão dos gestores locais.
O fato preocupante é que se num centro maior, tal como as capitais e cidades maiores (50% da população brasileira vive em apenas 253 municípios), as dificuldades de ao menos poder apresentar aos tomadores de decisão na área da saúde a necessidade de se refletir acerca de algumas medidas que podem trazer melhorias incrementais na assistência à saúde da população são enormes, imaginem no restante desse nosso país, de dimensões continentais. Noções de acolhimento, equipe de hospitalistas, qualidade e acreditação, gestão do corpo clínico, re-engenharia e tantos outros desenvolvidos para tornar a vida do cidadão melhor quando de sua experiência no contato com o serviço de saúde, dentro de um contexto de racionalidade, boas práticas, segurança e adequação orçamentária, simplesmente inexistem. Em outras palavras, metade da população brasileira, no mínimo, está naturalmente excluída da possibilidade de usufruir desses conceitos, que, diga-se de passagem, não necessariamente necessitam da existência de uma estrutura hospitalar de grande porte para ser aplicada.
E não é pra menos. Como trazer para discussão essas idéias quando o hospital local (que, se considerarmos a capacidade de resolução de casos mais agudos – para isso servem os hospitais – não deveriam se chamar hospitais. Talvez Unidades de Pronto Atendimento ficasse melhor), no qual encontramos na linha de frente um ou dois incautos atendendo uma multidão, em situações que vão desde uma virose num neonato até um politraumatizado?  Qual é a percepção do gestor hospitalar público ou privado acerca do que vem a ser essas novas tendências?
Saúde, para a maior parte do nosso país, com SUS ou sem ele, em primeiro lugar vai ser sempre em última análise uma responsabilidade do município (às vezes com uma ajudinha do estado). Em segundo lugar, por muitas gerações ainda será o espaço em que o cidadão vai encontrar um sujeito com um avental branco atrás de uma mesa atendendo uma fila enorme de pessoas, e aonde ele pode encontrar o alívio para sua queixa imediata. E só. Como sempre foi.
Preocupa-me não poder compartilhar um conhecimento que infelizmente está restrito à academia ou a espaços privilegiados de discussão. Preocupa-me ver o indivíduo comum satisfeito apenas com o que há de mais elementar na saúde. E cima de tudo, preocupa-me imaginar que, a despeito de todo esse contingente de usuários e prestadores de serviço que reproduzem as mesmas práticas de 20, 30 anos atrás, ao lado da nossa casa encontramos estruturas hospitalares que ainda não conseguem enxergar o momento histórico que se coloca no horizonte, em que podem ser protagonistas de mudanças tão simples e ao mesmo tempo tão eficientes na gestão do negócio saúde em geral, e dos processos internos em particular.
No fundo, pode ser que não seja tão improvável assim a gente descobrir que as cobras podem ter TOC.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Novos conceitos, velhos problemas


Enquanto se busca justificar o desempenho insuficiente do mercado de saúde, novos conceitos vão se agregando para tentar explicar razões e apontar caminhos, todos na expectativa de que algo de novo possa ser acrescentado. Assim é que, mais recentemente, vem sendo introduzido no nosso meio o conceito de Governança Clínica, envolvendo e complementando outro conceito muito importante, a Gestão do Corpo Clínico.

Nascido a partir das mudanças mais recentes que o Sistema de Saúde (National Health System – NHS) do Reino Unido vem implantando ao atendimento de seus usuários, e rapidamente absorvido por alguns países de língua inglesa (principalmente Austrália e Nova Zelândia), o conceito propõe a fusão no sentido mais amplo de iniciativas voltadas para a melhoria da assistência, utilizando como pano de fundo os processos de Qualidade (principalmente hospitalar) e Governança Organizacional. Temos então que, segundo o NHS, Governança Clínica “é um sistema através do qual as organizações são responsáveis por melhorar continuamente a qualidade dos seus serviços e a garantia de elevados padrões de atendimento, criando um ambiente de excelência de cuidados clínicos”. Para o alcance desses resultados, procura-se agir em quatro dimensões:
·         Desempenho profissional (qualidade técnica);
·         Utilização racional dos recursos disponíveis (eficiência);
·         Análise e gestão de risco ao paciente sob cuidados (gestão de efeitos adversos);
·         Promoção da satisfação do usuário com o serviço prestado.


Os mais distanciados das tendências recentes no mercado de saúde podem chegar à conclusão que tudo não passa de evidente obviedade, já tendo sido apontado em outras categorias. E, na verdade, até deveria ser. Mas justamente por exigir um esforço para que se revisitem os processos assistenciais básicos e os fatores não mensuráveis a ele atrelados, acabam por ser negligenciados em troca de soluções ditas modernas. Para o pagador de serviço, e principalmente para o paciente, interessa o resultado final. Mas isso não parece estar muito claro na cabeça dos nossos gestores.

O conceito de Gestão do Corpo Clínico está fundamentado basicamente na premissa de que os serviços de saúde precisam incentivar os profissionais (principalmente o Corpo Clínico, ou seja, médicos) a seguirem normas elementares de qualidade assistencial em benefício dos pacientes para os quais sua atividade-fim é voltada.  Para tanto, são preconizadas atitudes de incentivo à regimentalização, criação de comissões, resgate e valorização do papel do auditor, adoção de diretrizes e protocolos clínicos, regras de relacionamento multi-profissional e o registro adequado de todos os eventos relacionados à sua prática (documentos, prontuários, justificativas, dentre outros).  Como se vê, nada além daquilo que se esperaria de um profissional no qual se supõe possuir uma bagagem cultural e técnica acima da média.

Mas não é o que ocorre. Nas organizações de saúde, as coisas mais simples e elementares são as mais difíceis de serem seguidas, as mais complicadas de se mensurar, as mais desprovidas de significado para a alta direção e, lamentavelmente, as que mais impactam na saúde financeira da organização. Perceber essa singela associação de idéias e seu resultado final deveria ser uma tarefa relativamente fácil para aqueles que militam nessa área. Mas o distanciamento histórico entre o corpo técnico e o corpo diretivo das organizações, em parte causada pelo surgimento da “terceira pessoa” (entre nós representada pelo plano de saúde), assim como o aviltamento da profissão médica (e de outros profissionais de saúde), tornaram a compreensão dessa relação uma tarefa secundária, que aos poucos vem sendo resgatada.

Esses aspectos intangíveis podem fazer grande diferença no desempenho dessas organizações, desde que passem a fazer parte da agenda dos gestores. Esses, por sua vez, precisam estar totalmente alinhados com os conceitos de qualidade em geral, e mais especificamente compreender que os tempos agora são outros: os profissionais, notadamente médicos, são muito mais que agentes produtivos nessa cadeia. São co-responsáveis pela saúde organizacional e naturalmente eleitos a serem, além dos pacientes que estão aos seus cuidados, os grandes beneficiários desse conjunto de ações.

Se conseguirmos sensibilizar os pseudo-gurus do planejamento estratégico em saúde de que a falta desse recheio fará toda a diferença nos seus planos de negócio, acredito ser possível uma melhora objetiva dos padrões de qualidade assistencial.  Copiar modelos pode provocar um distanciamento entre o histórico, missão, valores e arcabouço político organizacional, implicando em desperdício de tempo e dinheiro tal qual vem experimentando algumas organizações com suas consultorias externas e seus executivos contratados a preço de ouro.

Simplificando, apesar de às vezes ser um pouco difícil, nunca foi tão importante olhar para o próprio umbigo. Problemas complexos freqüentemente podem ter soluções mais simples do que se pensam. 

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Hoje reproduzo nesse post artigo publicado no site Saúdeweb em 04/12, de autoria de Carlos Suslik, diretor da PwC Brasil e especialista em consultoria em gestão no setor de Saúde, e  Marcelo Orlando, sócio-líder de Serviços em Healthcare da PwC Brasil. A abordagem é bem interessante e vale a pena uma leitura atenta.


Saldo positivo em ‘caixa’ não é sinônimo de rentabilidade

Na ânsia de “fazer economia”, por vezes faltam clareza e precisão no discernimento de “onde economizar”. É aí que a qualidade do atendimento entra em xeque.
Nos últimos meses, o noticiário tem sido farto em apresentar alguns hospitais particulares lotados, com suas emergências se assemelhando às da rede pública por causa do imenso volume de atendimentos, ambulatórios carregados e alas de internação totalmente preenchidas. Por trás desse fenômeno, essencialmente, está o aumento da base de beneficiários dos planos de saúde – fator decorrente tanto da evolução da renda média da população, quanto do crescimento do emprego formal, que tem no plano de saúde um benefício elementar.
Quando indagados se essa situação é benéfica, quase todos os administradores de hospitais que vivenciam essas situações costumam responder, reservadamente, que o business “vai bem, faturando como nunca” em uma análise stricto sensu do negócio. Afinal, mesmo com a capacidade instalada quase plenamente ocupada, o consumidor continua demandando mais e mais serviços, o que leva à escalada do faturamento. Contudo, muitos reclamam de suas margens, de suas responsabilidades com relação aos pacientes, do fato de precisarem cada vez mais de recursos para atender à crescente demanda por qualidade e de enfrentarem negociações difíceis com as operadoras de planos de saúde.
Todavia, há que se ter certo cuidado com a convicção de que “hospital cheio é bom para o negócio”. Em muitos casos, seria mais prudente observar que o faturamento crescente pode representar uma enorme oportunidade para ajustar o negócio, torná-lo mais eficiente e lucrativo. Como? Algumas soluções dependem exclusivamente da combinação de foco, coragem e capacidade técnica.
Em um hospital voltado, por exemplo, para um público da classe C, é possível mexer em hotelaria sem abdicar da qualidade? Deve-se expandir a área de enfermagem? O que é mero conforto e o que é, de fato, relevante para a recuperação do paciente?
É mais do que lógico que tudo o que afete o desfecho e o sucesso do tratamento não pode, e nem deve, ser abandonado. E, nessa ânsia de “fazer economia”, por vezes faltam clareza e precisão no discernimento de “onde economizar”. É aí que a qualidade do atendimento entra em xeque.
Muitos administradores querem reduzir custos. São recorrentes os casos de substituição de fornecedores na busca por materiais mais baratos e de utilização de equipamentos de tecnologia superada. Paliativos que dificilmente seriam capazes de gerar algum resultado mais substancial, mas são apostas…
Reestruturação de processos
O caminho mais complexo, portanto mais difícil, tende a ser aquele capaz de gerar os melhores resultados. E no cerne dessa questão está a estruturação dos processos. A partir dessa organização é possível enxergar com clareza a estrutura de custos e, assim, começar a entender o que efetivamente gera ou afeta a lucratividade do negócio. Insistimos: caixa crescente não é sinônimo de rentabilidade.
Tendo processos claros e precisos, com aferição de performance, é mais factível para a empresa tomar as decisões mais adequadas. E o bom movimento momentâneo deveria ser enxergado como a grande oportunidade para melhorar a organização. Hoje, a regra geral é “mudar tudo” na baixa, no momento de crise, o que torna todas as iniciativas mais dolorosas e onerosas. Parece claro que o processo deveria ser inverso.
E se a fase é boa para mudar e conferir maior solidez à atividade, uma recomendação básica é entender o modelo de negócio do hospital. Afinal, o que se deseja em termos de foco e posicionamento? Por que, voltando ao exemplo daquele hospital focado na classe C, haveria sentido em investir em uma “ala VIP”?

Parece também estar ficando para trás a era do “hospital-geral”, que atende a tudo e a todos. Há uma tendência muito forte rumo à especialização, e vários motivos justificam tal escolha, como o potencial de fidelização dos clientes e a possibilidade de ganhos de escala em compras e gestão de insumos, para citar apenas dois exemplos.

E, voltando para a gestão dos custos e de processos, isso permitirá, também, antecipar a obsolescência de equipamentos: muitos hospitais, porque não estão capitalizados ou porque não querem investir nessa frente, têm uma despesa maior com manutenção ou paralisação de equipamentos – caso em que, na realidade, deixam de faturar – do que teriam na aquisição ou no arrendamento de máquinas novas. Nesse cenário, o paciente sairia ganhando e, com isso também, a imagem do hospital.
Outra cilada a ser evitada com o alto volume de clientes é imaginar que a escolha pura e simples do hospital está vinculada a uma percepção consolidada de bom atendimento. Talvez “a vantagem competitiva” de um estabelecimento esteja na falta de concorrentes na mesma região ou no fato de que outros hospitais não estão credenciados na mesma quantidade de planos de saúde. Para saber se é isso ou algo mais, é importante promover uma pesquisa de opinião com os clientes e entender se, como prestadora de serviços, sua empresa atende às expectativas do usuário.
Um caso incrivelmente inovador, pela simplicidade adotada, é o do Hospital da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Em uma pesquisa, os pacientes se queixaram da falta de clareza sobre a condução dos tratamentos e por não terem a menor ideia de como seriam as rotinas ou as visitas dos médicos. A solução simples foi instalar um quadro, em cada quarto, onde enfermeiros e médicos informam exatamente qual será o dia a dia do paciente, com os horários das respectivas ações, tarefas e visitas. Essa transparência resultou em menor permanência dos pacientes, aumento do giro e uma percepção altamente positiva dos usuários.
Para tudo em um hospital, portanto, convém contar com um plano de ação. Vale para a emergência lotada, vale para a UTI de difícil administração que trata das mais distintas enfermidades. A crescente procura por parte dos pacientes pode ser uma ótima chance para a empresa se tornar mais rentável. É só fugir do deslumbramento e enxergar a oportunidade de transformação.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Outra verdade inconveniente?


O artigo “Alguém está satisfeito com seu plano ou seguro saúde?”, publicado em 10/09/2012 no site da Saúde Web, me levou a uma reflexão. Da forma como está escrito, e salvo melhor interpretação, nos passa a sensação de que basta que a concorrência seja estimulada para que haja equilíbrio no mercado da saúde. Além disso, induz o leitor a pensar que em função das demandas geradas por reclamações em órgãos de defesa do consumidor, as operadoras de planos de saúde são, de fato e na essência, as verdadeiras responsáveis pelas agruras pelas quais os usuários são vítimas.
Os autores que me perdoem discordar. A despeito de não ser um simpatizante com a forma predatória de que uma grande parte das OP’S age em defesa de seu caixa, desvirtuando muitas vezes propósitos até mesmo altruístas, e apesar da ANS não ter a sua importância reconhecida de forma unânime, já tempos maturidade suficiente para identificar os gargalos que impactam na assistência à saúde dos indivíduos em geral, tanto no âmbito privado quanto público. E as respostas talvez não sejam assim tão simplistas.
Em verdade, desconheço sistemas de saúde que não passem por reflexões constantes acerca de sua realidade: tudo é uma questão de quem analisa o problema e dos interesses que estão por detrás de uma crítica ou elogio. No nosso caso, devemos nos recordar, inicialmente, os propósitos pelos quais a ANS foi criada e nos lembrarmos do quão importante na defesa desses chamados assim consumidores, em virtude de um cenário de desrespeito total a regras mínimas de mercado, penalizando os usuários de então com exclusões absurdas e reajustes abusivos. Se a agência não está cumprindo a contento seu papel, pode ser, dentre outras explicações, que seja por falta de “pernas” para acompanhar de perto as minuciosas nuances desta relação, que, acreditem, já foi muito mais desigual e cruel. Não dá para deixar fechada a possibilidade de que possa estar ocorrendo, de forma explícita ou não, alguma pressão corporativa que leve à inação da mesma em alguns momentos, mas esse é outro assunto.
As queixas existem e sempre existirão. As empresas não são perfeitas, e num cenário de tantas adversidades regulatórias, é esperada a concentração e o monopólio local em algumas localidades. Assim o é qualquer mercado, de qualquer segmento. Quanto às comentadas assimetrias na relação, isso também é um traço característico desse mercado da saúde. Mas assim o é em todo o mundo: é a lógica do seguro. Qualquer seguro, inclusive saúde, entendido em seu contexto mais amplo.
O SUS não presta uma assistência de qualidade? Existem muitas lacunas a serem preenchidas? Falta financiamento? Falta gestão? Essas e outras questões terão sua vez de serem encaradas com maior seriedade ao seu tempo, na medida em que a própria sociedade evoluir nas suas percepções e necessidades básicas. E já o estão sendo.
Quanto às OPS’S, elas bem sabem que seu futuro vai depender visceralmente da incorporação de medidas que viabilizem sua atividade com qualidade e, principalmente, garantam o acesso daqueles que mais necessitam. O gerenciamento de suas ações, focadas na eficiência de suas ações e não numa roda protelatória de má assistência, solicitação excessiva de exames e avaliações por outros especialistas, acompanhadas da realização de procedimentos/internações desnecessárias; pode sim trazer benefícios a quem se utiliza dos serviços. Com alguma competência e mudança na forma de ver o negócio, quem sabe até alguma reserva financeira que permita longevidade. Mas isso é um problema das OPS’s, que certamente vão encontrar os meios para se atingir isso ou algo parecido com isso. Senão deixam de existir, como ocorreu com tantas outras.
Assim sendo, pense numa situação surrealista: milhões de usuários pressionando o SUS por melhor eficiência, todos oriundos de planos de saúde em função de sua insatisfação com os mesmo ou incapacidade de arcar com a sua manutenção. Não seria uma forma interessante de se fazer uma pequena revolução em nosso sistema? A burguesia, a elite intelectual, precisando do SUS de forma simbiótica, elegendo-a forçosamente como instância assistencial exclusiva?
Vamos pensar nos dois lados das coisas. Isso pode não tardar a acontecer.

Até que a morte os separe


Existe uma frase atribuída a Max Nunes que diz o seguinte: “Há uns casais que se detestam tanto que não se separam só pra um não dar esse prazer ao outro”. Pois nas relações comerciais e profissionais parece que algumas vezes acontece a mesma coisa.

O casamento entre prestadores de serviço e os intermediários de serviços médicos, chamados popularmente de operadoras de planos de saúde (sim, caro leitor, são intermediários na prestação de serviço), já ruiu há algum tempo. Ele vinha sobrevivendo a crises consecutivas, cada uma mais grave que outra, até que se extinguiu. Não há mais simpatia. Nem respeito. Nem consideração. Igualzinho como entre duas pessoas que um dia imaginavam construir algo de concreto e de benefício mútuo, mas que percebem que não é bem assim que as coisas são.
Duvida? Olhe ao redor. A despeito do aumento em números reais da quantidade de usuários de planos de saúde no nosso país, a qualidade do serviço prestado pelos atuais “players” do mercado fica muito a desejar. Todo mundo sabe disso. O índice de insatisfação dos usuários e prestadores subiu na mesma proporção em que as relações entre as operadoras, prestadores (principalmente médicos) e usuários azedou.
Esses últimos, agora reféns de uma escolha feita pelo RH da empresa em que trabalha e que na maioria das vezes não tem o poder de decidir que operadora sua empresa irá escolher para fornecer o tal plano de saúde, ou não têm informação suficiente para estabelecer juízo de valor nessa escolha; já não sabem a quem recorrer. Até porque é sabido por todos que o custo de levar a termo qualquer contestação judicial a respeito de uma atitude considerada inaceitável pelas operadoras para com um usuário ainda assim é compensada pela manutenção de estratégias que visam impedir ou dificultar o acesso aos seus serviços. Os prêmios (mensalidades) anunciados são ridículos e irreais, baseados em cálculos atuariais tendenciosos e inflados por um senso de oportunismo que até hoje ninguém se atreveu a regular.
Os profissionais, notadamente os médicos, parecem se comportar como numa relação de namoradinhos adolescentes: se não fizer isso, eu faço bico. Se não me pagar como eu quero, eu paro de atender um, dois, dez dias, não importa. Se não me der condições para atuar dentro que eu considero mais adequado do ponto de vista de liberdade de ação, eu também não quero mais brincar.
Toda relação tem suas regras, escritas ou não, que se traduzem, nesse caso, em contratos, termos de ajuste os mais diversos, e em atitudes tácitas baseadas na ética e no bom senso. Há, sem sombra de dúvida, uma quebra de todos esses paradigmas. Sonegar uma remuneração justa é apenas um desses aspectos.
Assim sendo, por que permanecer mantendo a aparência de um casal que se dá bem, quando o que ocorre é o oposto? Já não é chegada a hora da categoria, através de suas entidades representativas, assumir unilateralmente a falência deste modelo de relacionamento, que em última análise acaba por nos tornar cúmplices dessa não disfarçada ação espoliadora sobre aqueles aos quais juramos servir com nosso talento e dedicação? Que tal pensar na possibilidade de voltar às origens e ser um pouquinho, só um pouquinho, novamente um profissional liberal?
As operadoras de planos de saúde certamente também têm seus motivos para estar insatisfeita nessa relação. Os médicos são manipuladores, algumas vezes mal intencionados, e em diversas circunstâncias forjam números e situações para justificar suas ações, em troca de um potencial ganho paralelo. Médico é humano. Seres humanos erram. São passíveis também de deslizes desprezíveis. Mas enquanto esses representam uma fração de um universo amplo, as práticas contestáveis de gerenciamento clínico e operacional das empresas, principalmente das líderes de mercado (assim intituladas em função do número de usuários) saltam aos olhos pela ganância e pelo afastamento de seus princípios, valores e missão. Para estas, não custa lembrar que a razão de sua existência está calcada na existência dos próprios médicos. Se estes não existem, não existe operadora.
E há quem acredite que a implantação de “modernas técnicas gerenciais”, como as advindas de empresas estrangeiras (muito em pauta recentemente), pode ser solução para o problema, simplesmente porque são um sucesso enquanto corporação em seus países, com seus públicos, suas legislações e sua cultura. Vamos ver.
Então, por que o casamento persiste? Para isso teríamos que recorrer a uma construção histórica que justificaria o atual estado de coisas, assim como explicar a interdependência dos setores públicos e privados na prestação de serviços em saúde, o que foge ao objetivo deste post. Mas deixo aos que me lêem que façam suas reflexões.
“Chama-se casamento de conveniência o casamento entre pes­soas que de modo nenhum convêm uma à outra.” (Jean-Baptiste Alphonse Karr).